sábado, 3 de outubro de 2020

Ser Pacotiense

Um povo de memória curta é um povo sem futuro. 

(David Gakunzi)

 

Alguns estudiosos, em passado não tão distante, insistiam em classificar os povos, as gentes e os indivíduos. Criavam estereótipos pela ideia literal de que o homem é produto do meio. Permita-me o leitor fazer um pouco de uso desses "perfis", mas o faço com um sentido simbólico, metafórico, como verá.

A opinião de que o povo brasileiro, em linhas gerais, é alegre e acolhedor, mesmo ante as piores adversidades, tornou-se ainda mais latente quando referente à imagem do nordestino sofrido, contudo audaz. Acrescente-se uma boa dose de criatividade e bom humor e temos o cearense. Ser pacotiense também é tudo isso, e talvez um pouco mais.

A Serra, por si só, foi um espaço de abrigo em tempos difíceis. Seus regatos, verdes matas, solos férteis para inovadoras possibilidades de plantio, em contraste com os áridos sertões, atraíram gentes de todo lugar. Índios, brancos, negros, estrangeiros, entre ricos proprietários ou pobres flagelados, assim no Brasil, assim por aqui.

Pacotiense, povo hospitaleiro, prosador, religioso? Sim, temos de tudo. Até do que não foi citado. Ninguém é perfeito... 

Conversando com representantes de antigas gerações, todos afirmam a mesma certeza: Pacoti era uma grande família! Todos se conheciam, se ajudavam... Saudosismos à parte, é fato que uma pequenina cidade como a nossa, ainda menor ontem, proporcionava essa realidade e, ainda hoje, podemos dizer que “quase” todos nos conhecemos.

Confesso que o “quase”, um tanto generoso talvez, vem alertar que nas ruas, muitos rostos já não são mais familiares, que certos horários já não são convenientes e que os constantes atos de violência, tráfico de drogas e outros meios de degradação, incluindo a ambiental, insistem em fazer parte das coisas comuns de nossa paisagem tão bela e única, de árvores, pássaros e clima ameno em pleno século XXI.

Será teimosia nossa, insistir em resistir, não aceitando que a tal evolução nem sempre caminhe para o melhor? A população cresceu? Um tanto! Especialmente na zona urbana, de novos bairros, talvez por ser mais atraente (quem diria!) que a tão espaçosa, mas de pouca estrutura, zona rural? A agricultura foi nossa maior ocupação. Em quê nos ocupamos essencialmente agora? A juventude está ocupada ou ociosa? O seu futuro irá chegar? Sei que o progresso chegou... Mas, qual o seu preço?

Nos anos de 1950, o jornalista Waldery Uchôa percorria o interior cearense coletando informações sobre os municípios para o seu “Anuário do Ceará”, publicação nos moldes dos antigos almanaques, com dados históricos, geográficos e estatísticos, e que também lembra o Anuário de hoje, porém com mais riquezas de detalhes e registros da opinião do próprio Uchôa que tudo ia vendo de perto nas cidades visitadas.

Em 1953, sobre Pacoti ele disse que: “O seu povo é simples e lealdoso. Na sua maioria conserva os hábitos e costumes antigos, guardando, assim, a tradição como maior relicário, daí porque a civilização não mudou-lhe o caráter conservador e pacifista”. 

Quase sete décadas depois, fragilizada está nossa cultura. Massificada, morrendo em seu próprio chão, atrofiam-se as raízes. Da parte de quem nos representa, no presente, faltam projetos de futuro que reconheçam o passado. “Para quê? Não estaremos sequer vivos!” dizem os egoístas. Palavras que perigosamente querem tornar um inescrupuloso “senso comum”. Somente o aqui, o agora, e nada mais.

Quantos ilustres filhos, Pacoti! Todos pródigos, mas distantes, poucos retornaram à terra natal para dar sua efetiva contribuição em seu desenvolvimento, além do próprio nome. Quantos outros filhos sequer puderam chegar ao seleto grupo dos ilustrados, mas fizeram, ou não, ou fazem algo por ti. Pois ainda é tempo! Rememorar e agir!

Waldery Uchôa nos disse mais: “Gente ordeira, pacata por índole e tradição, a pacotiense aguarda dias de maior prosperidade, notadamente quando surgirem os bons invernos que lhes outorgará fartura e bonança independente da vontade dos poderes públicos”.

Quanta atualidade nessas palavras! A esperança ressurge. Somos todos responsáveis, aprendamos a cuidar e fazer boas escolhas. Então, que nos venham chuvas! Não as de excesso, do erro da súplica cearense, das enchentes de 1964, de 1988 ou de 2009, da destruição... Mas chuvas de equilíbrio, de bom plantio, de educação, daquelas que fazem nascer da terra os bons frutos, da boa colheita de transparência, a exemplo da límpida água que cai.

Desejo que estes escritos sejam gotas vigorosas a molhar o chão de nossa história e memória coletiva, árido que está pelo esquecimento, descaso, interesses vãos. Resgatemos, pois, o orgulho de ser pacotiense, de ser cidadão do mundo! Afinal, como nos diz Liev Tolstói: "se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia."

Parafraseando o mestre Câmara Cascudo, assina esse texto um "provinciano incurável", de nome:

Levi Jucá 

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